Quando a gente vai morar fora, muita coisa já mudou e outras tantas mudanças ainda estão por vir. É o emprego que fazia tempo que não servia mais, é o relacionamento que estava na corda bamba, é a nossa paciência que foi para as cucuias.
Precisamos do novo
Partimos porque buscamos novidades e queremos sentir, de novo, o gostinho das conquistas. Precisamos de um novo trabalho que nos mostre o quanto ainda somos produtivos, queremos sentar num pub para trocar olhares descompromissados, devagarinho a nossa paciência vai voltando e assistir a um pôr-do-sol já acontece sem culpa e sem olhadas para o relógio.
É o novo e o novo não é para qualquer um. Dá medo, nos enche de receio, nos deixa de cabeça quente e coração acelerado. E viver o novo também, na maioria das vezes, significa recomeçar. Morar fora é, antes de tudo e de qualquer coisa, um recomeço.
Para uns pode ser um recomeço mais de boa, mas para tantos outros é montar num touro em uma arena de rodeio. É em disparada, aos solavancos. Até aí tudo bem, pois já meio que sabemos que sair da zona de conforto é, inevitavelmente, passar de avião por nuvens turbulentas durante a decolagem.
Morar fora: excesso de ontem, excesso de hoje e excesso de amanhã.
A cirurgia que vai mudar sua vida morando fora
Porém, depois que as coisas começam a se acalmar é que acontece a pior das cirurgias. Sim, morando fora você terá que fazer uma cirurgia hiper invasiva que vai abrir o seu abdômen de fora a fora. É uma cirurgia grave, feita para a retirada total do rei que vive na sua barriga.
É, aqui do lado de fora a gente precisa “esquecer” quem somos por alguns momentos ou não sobreviveremos. Não sobreviveremos porque recomeçar exige trabalhar numa área que não é a sua, porque morar fora pode significar ter que andar de busão num dia de chuva e frio e comer uma marmita que levamos de casa para o trabalho.
Ouvimos muitos “nãos”, somos subjugados, duvidam tanto da gente que nos pegamos, muitas vezes, nos questionando com lágrimas nos olhos sem entender o que viemos fazer aqui. A vontade de desistir é enorme, mas aí é que entra a pior das cirurgias.
Sim, precisamos “descer do salto” ou não aguentaremos. E muitos não aguentam, muitos voltam e mesmo que digam que foi por dificuldade de adaptação, as vezes a real é que a cirurgia para a retirada do rei barriga deles não foi bem sucedida e, com isso, voltar para o garantido é questão de sobrevivência. Deles e do rei.
Morar fora: a gente aprende a ser daqui.
Os arrogantes não sobrevivem
Aqui os arrogantes não costumam sobreviver por muito tempo. Do lado de cá você não é ninguém e precisa comprar um livro e uma caneta novos para recomeçar a escrever a sua história. É do zero. A viagem de vinda não deixa de ser um trajeto do tudo para o nada.
Em poucas horas você entra num avião cheio de histórias, viaja pensando no seu futuro, pousa no seu destino e zera a sua vida no desembarque. É como apertar o botãozinho de “reset”, é recomeçar. Mesmo.
Porém, muitos sobrevivem a cirurgia de retirada do rei da barriga, passam por um longo e doloroso processo de recuperação e entendem que ou é assim, com corte profundo na própria carne, com o rei sendo arrancado com raíz e tudo, ou não existe a menor possibilidade de um recomeço de sucesso.
Morar fora: se a gente não voltar.
E para morar fora precisamos de pé no chão, de luta pegada dia após dia por um lugarzinho ao sol. É levando não, é pensando em desistir, é conseguindo um novo emprego, é atuando em outra área, é contando moedas, é ralando o peito para se aguentar.
E devagarinho a gente vai se aguentando e quando vê já nem pensa mais em voltar. O rei da barriga não faz falta, a gente recomeçou e a nossa vida entrou nos eixos. A gente sentiu a pior das dores, mas sobreviveu e hoje não permite que outro rei entre na nossa barriga e faça morada.
Justamente porque nos lembramos, todos os dias, do difícil e doloroso processo de despejo do rei gordo que, por algum tempo, viveu na nossa barriga. Morar fora é isso, é desapegar, é sofrer, é mudar, é crescer, é recomeçar. E uma coisa eu digo: sem rei na barriga tudo acontece de maneira muito mais fácil. Pode acreditar!
Morar fora: a jornada de quem não pode fracassar.
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1 comentário
Cláudio, queria ter lido crônicas como a sua antes de ter tomado a decisão de ir embora. Eu fazia analogia com o parto. Mas entendi onde estava errada. Um bebê não tem história, documentos, pertences. Tua analogia é muito melhor! O Rei que habita em mim, é desconhecido e até negado (quem reconhecer ter o rei na barriga?), mas nesta hora percebemos o imenso apego que existe…
Obrigada por tuas palavras, não torna mais fácil o processo mas é melhor quando podemos entender nossa dor!! E você ainda nos brinda com a esperança de que será melhor sem “ele”, depois!